Ao passar por Lisboa rumo a mim
Por Alexandre Honrado
Era Fernão Lopes, o cronista, quem dizia de Lisboa uma cidade de “desvairadas gentes”, querendo dizer com isto que a capital portuguesa cumpria um destino saudável, o de ser de todos e de cada um, multicultural, atraente, cosmopolita, de feições internacionais – ao contrário de outras, apenas fechadas sobre as suas próprias sombras, cumprindo becos e medos de ruas escuras e desconfiadas. Lisboa que de outrora aos nossos dias foi ousando a absorção de novos valores, mais jovem, mais massiva e massificada, mais colorida, mais espetáculo e mais circuito cultural. Deixou de ser a cidade irremediável, adiada, presa em masmorras e desamor.
É confrangedor ouvir o coro dos desesperados que só veem a cidade com olhos raiados de miopia, ignorando como é vistosa, paradoxal entre o que nela é passado, nem sempre motivo de orgulho, e o que nela é presente e sobretudo emergente.
Lisboa é de uma estética urbana que poucos rivais encontra pelo mundo. Tradicional e moderna, tatuada e esburacada, milionária e pedinte, com a magnificência do Tejo como guardião. Não é a cidade que foi. Perdeu o ar tristonho, provinciano, rural, nem é o boneco de trapos a fingir-se dama de imperialismo ao gosto do Estado Novo. Dela já não partem vivos-mortos: nem soldados para a frente da Grande Guerra nem para as armadilhas coloniais. Também já não chegam ao cais os caixões de pinho com os soldados, meninos caídos em combate – alguns anónimos, todos injustiçados.
Há agora outra energia, com carimbos ecológicos, eletrónicos, espetaculares. E alguns dos transeuntes esquecem-se da frase mais carismática que usam enviesada: só neste país! É verdade. Só neste país recebemos visitantes que nos dizem: nem imaginam o que têm aqui!
É que eles vêm de sítios que não têm nada do que temos aqui. E o que aqui temos é, ante de mais, um povo de uma generosidade incomparável.
Gosto de desvairadas gentes. Que falam alto, tatuam a pele e a frontaria da casa, entre o deve e o haver a ver no que isto dá. Desvairadas gentes que exige direitos e conhece a força dos deveres.
Lisboa teve uma história triste – 400 anos de amargura, entre o século XVII e 1974, com as maiores adversidades, de guerra civil a terramoto, peste, fome e pé descalço e as barracas que o ditador achava que serviam perfeitamente, a gente sem comida, nem água, nem luz, nem alfabetização, bem melhor para moldar.
É mais fácil uma ditadura – de qualquer imbecil com umas armas a seu serviço se faz um ditador – do que uma terra de liberdade. E mesmo com as ameaças do presente, com os novos candidatos a ditador a mentirem pelas esquinas e os perigos invisíveis que cada vez mais nos ameaçam, esta é uma Lisboa de desvairadas gentes capazes de tudo e do melhor.
Sim, a liberdade é um território sagrado.
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